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Blog do 

Julio Maria

Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico

The Voice: o que reconhecer e o que enterrar para sempre

Primeiro programa de massa a colocar a música no protagonismo desde a Era dos Festivais, produção tratou artistas entre desprezo, excelência e elogios irresponsáveis

Lulu Santos, e só ele, conseguia ir além das superficialidades | Divulgação: Rede Globo

Já estamos no primeiro dos últimos onze anos sem um The Voice e, sim, vamos descobrir que éramos felizes, ou generosamente contemplados, e não sabíamos. O The Voice, criado pelo holandês Jonh de Moll como um cover de outra franquia, o The X Factor, é uma experiência a ser estudada, agora, ao som do silêncio e à luz do distanciamento. Verdade que só se foram alguns dias de distanciamento, mas segure as pedras antes de atirá-las, só por mais um parágrafo.

Até que a audiência começasse a cair, o The Voice foi a mais bem sucedida atualização dos velhos programas de calouro dos anos 80. O último ponto de uma linha do tempo iniciada pelas transmissões dos Festivais da Canção, em 1964. Um produto de viabilidade comercial surpreendentemente próspera gerado, atenção aqui, pela música. Não acontecia isso desde o fim da Era dos Festivais.

 

Seja lá o que candidatos, produtores, jurados e arranjadores fizessem com as canções, a música era a protagonista. Um candidato se apresentava e o que era discutido em sequência, quando o jurado tinha estofo para isso, dizia respeito a improvisos, carisma, postura de palco, afinação, melismas, vibratos. Cantava-se Milton Nascimento, Ray Charles, Caetano Veloso, Stevie Wonder, Gilberto Gil, Aretha Franklin, Tom Jobim. E isso tudo em horário nobre.

Antes do The Voice e depois do Fino da Bossa, a música televisionada por grandes companhias de comunicação no Brasil só foi coadjuvante, ilustrativa, recreativa, mendiga. Chacrinha, Bolinha, Barros de Alencar, Hebe, Flávio Cavalcante, Faustão, Jô Soares, Silvio Santos, Gugu, Ratinho, Xuxa, Mara, Ronnie Von. Muitos desses programas levavam artistas para cantar usando playback. O baterista fingia tocar com uma caixa e um prato.  

Chacrinha dava espaço a quem participava de sua caravana de shows por cidades do interior sem cobrar cachê e o jabá, o dinheiro pago para se apresentar nos programas, comia solto. Quando não se tratava do jabá institucionalizado, havia o câmbio negro. Numa grande emissora, o músico que dirigia o grupo do programa armou um esquema de corrupção à revelia da própria empresa (uma história que um dia será contada). Quem pagava ganhava espaço.

O The Voice, contudo, foi uma relíquia em horário nobre por puro acaso. Grandes sistemas corporativos não admitem bloqueio nos dutos pelos quais passam os milhões de reais adquiridos via cotas de anunciantes e jamais investem em algo por amor. Em 2019, a Globo anunciou ter dobrado seu faturamento ao arrecadar R$ 115 milhões. Assim que os números caíram, números não revelados pela empresa, o programa foi desativado.

E então, chegamos às contradições. O The Voice entregava aos telespectadores uma excelência visual, uma captação de áudio das melhores do mundo e uma produção esmerada. Mas também pecava, e muito. Alguns cantores ou cantoras que passaram por ali não voltaram com histórias edificantes. Uma delas conta sua saga sob inegociável anonimato: ela foi buscada em casa, no Rio, às 6h da manhã, levada para uma sala de 40 metros quadrados no Projac, na Globo, com outras 20 candidatas, e chamada para gravar apenas 11 horas depois, às 17h. Maquiada, de salto alto e com vestido longo, foi levada às pressas de um bloco a outro. “Fui obrigada a correr para chegar direto no estúdio, a plateia já estava aguardando. Comecei a cantar ainda tentando recuperar o fôlego.”

 

As músicas eram escolhas do produtor, assim como os arranjos. Ou seja, em um programa que existiu para valorizar o artista, ao menos era desse material inspiracional e comovente que transbordavam os discursos dos jurados Lulu Santos, Carlinhos Brown, Iza e Michel Teló, de nada valia a opinião do cantor sobre aquilo que sairia de sua boca. Era o preço da fama.

E foi assim, cobrando o seu preço, que a TV brasileira viveu os últimos dias em que a música esteve no foco. Milhares de pessoas recebiam quase sempre grandes interpretações comentadas em suas casas, ainda que os resultados não fossem exatamente justos. A última noite deveria ser de Amanda Maria, que cantou Respect, de Aretha Franklin, ou de Thais Ribeiro, que trouxe Run to You, do repertório de Withney Houston. Mas foi Ivan Barreto, que defendeu Um Dia de Domingo, o campeão pelo voto popular, acalentado em seus exageros com certa irresponsabilidade por Lulu Santos. Ele tem uma grande voz, mas nem sempre sabe o que fazer com ela. Sua vitória foi a metáfora perfeita para o fim do The Voice, um grande programa que a Globo não soube manter.

 

Julio Maria

The Voice

Quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

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