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Blog do 

Julio Maria

Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico

'Refém de militantes, MinC pega contramão das inclusões sociais'

Cientista político, membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais por 12 anos e eleitor de Lula, Manoel J. de Souza Neto tem verdades inconvenientes sobre o que impede o Ministério da Cultura de criar uma política abrangente: assim como Bolsonaro, o PT usa a pasta para engajar sua base

Margareth Menezes: História de superação a credencia para liderar a pasta, mas pressões de grupos aliados impedem ações abrangentes | Foto: Ricardo Stuckert

Quatro anos de espancamento moral vividos durante a gestão de Jair Bolsonaro podem não ter ensinado muito ao setor musical. Mesmo depois de passar pelas mãos de um presidente que reduziu o Ministério da Cultura a uma secretaria, sufocou os financiamentos da Lei Rouanet, oficializou a ideia de que músicos são parasitas grudados nos seios do governo e nomeou como um de seus secretários Roberto Alvim, um cover do ministro da propaganda nazista de Hitler, Joseph Goebbels, ainda não há esboço de uma política pública efetiva, funcional e de práticas inclusivas.

Quase um ano depois da posse de Lula e da volta do MinC, com uma mulher com histórico de superações como Margareth Menezes à frente, a persistente falta de um plano maior que não atenda apenas a grupos específicos acende um alerta. “Assim como o bolsonarismo adotou o ódio aos músicos como estratégia para ampliar a ideia de culto ao trabalho e criar engajamento, o PT adotou um discurso de defesa da cultura por meio do imediatismo de editais como forma de cooptação de seus eleitores. Mas os dois discursos são incompatíveis com a realidade”, diz ao BJM o membro do Observatório da Cultura do Brasil, Manoel J de Souza Neto, membro do CNPC e do Colegiado Setorial de Música do MinC entre 2005 e 2017.

 

Além de participar de tentativas aprofundadas da criação de uma política nacional da música desde a primeira gestão de Lula, em 2003, Manoel de Souza elaborou um estudo sobre as contradições da Lei Aldir Blanc no Estado do Paraná, analisando inscrições feitas em um período de oito anos, de 2015 a 2023. O resultado, revelado agora, mostra o microcosmo assustador do que pode estar acontecendo em todo o país: um grupo de 103 artistas ganhou verbas para realizar de 10 a 20 projetos cada um enquanto 44 mil trabalhadores da Cultura tiveram suas inscrições negadas.

Ceder à influência radical dos chamados blocos de poder, grupos de artistas ou empresários alinhados por interesse com o governo, e dos grupos de interesse, setores que negociam com qualquer governo para conquistar ganhos específicos, são, segundo Manoel, uma armadilha na qual entrou o MinC de Margareth e que a impede de se movimentar em direção à inclusão social, a causa maior do partido. “O financiamento público da cultura pelos editais deveria estar relacionado a metas, diretrizes, planos e sistemas, e não ao fato de ser usado como uma forma imediatista de cooptação de classes, engajamento e mobilização de eleitores.”

“Os movimentos sociais mais próximos do poder caíram em um imediatismo de edital, um discurso de apoio partidário: ‘Vamos apoiar porque tem de apoiar’ ‘Lula está no poder, não é hora de querer mudar nada’”, conta Manoel, que fala ainda da inagregável classe musical e da ideia fantasiosa de que o país possui uma “MPB de esquerda”.       

 

Depois de ler aqui no BJM o artigo Editais, Escassez e Busca por uma Classe, sobre os dilemas atuais do setor musical, Manoel procurou o blog e aceitou conceder essa entrevista exclusiva:

 

Que saldo pode ser feito sobre o primeiro ano da volta do MinC?

Existe um fator representativo icônico e imagético com Margareth, assim como foi quando Gil assumiu a pasta no primeiro governo Lula. Isso é positivo, mas, ao mesmo tempo, já traz uma preocupação: houve muita narrativa e propaganda sobre isso enquanto blocos específicos no poder lutavam por interesses próprios, e não de classe. Isso tudo vai contra questões que o governo defende, ligadas à pluralidade e às políticas inclusivas e de diversidade. Não existe um plano para a classe e a pergunta é: para onde está indo esse ministério? A resposta nas reuniões tem sido: ‘Lula está no poder, e isso já é bacana. Estamos no poder, não é hora de discutir.’

 

O que a ministra Margareth pode fazer para conseguir algo relevante?

A questão é que o PT adotou um discurso de defesa dos recursos da cultura por meio de editais como forma de cooptação de eleitores assim como o bolsonarismo adotou o ódio à cultura para ampliar a ideia de culto ao trabalho e também criar engajamento. Mas o discurso de cada um é incompatível com a realidade de um projeto inclusivo e estruturante. A falta de política cultural de Margareth relaciona-se ao fato de que o financiamento público da cultura deveria ser relacionado a metas, diretrizes, planos e sistemas, e não apenas a uma forma de cooptação de classes, engajamento e mobilização de eleitores. Essa armadilha em que o ministério entrou é prejudicial para a política cultural e para os próprios dirigentes, porque não é factível o que estão propondo e isso vai acabar gerando frustração.

 

Se o PT e as esquerdas são forças políticas alinhadas historicamente com setores populares da música brasileira, desde as manifestações regionais e folclóricas, passando por grupos urbanos de LGBT’s e rappers, até à própria MPB, o que impede que ele crie uma política que contemple esses setores?

Existe um mito de que temos uma MPB de esquerda, mas ele não se manifesta de fato. Esse setor traz, na verdade, um pensamento elitista com a ideia de uma superioridade estética e artística, mas fala sobre o povo sem ter estado no meio do povo. É uma construção um tanto pequeno burguesa do próprio pensamento da MPB que, no entanto, ajuda a formar um pensamento de lutas populares a partir de uma estética.  Essa ideia de luta contra a ditadura coincide com o final dos anos 70, quando ressurge o sindicalismo no Brasil e, logo depois, o PT. Mas vamos também lembrar que boa parte dos artistas populares no Brasil são de direita. Então, não há essa unidade efetiva do setor musical. Alguns segmentos são mais ouvidos do que outros e, com estéticas diferentes e demandas particulares, não se reconhecem como categoria. Eles acabam se contentado com questões de promessas mais imediatistas.

 

Há uma ilusão no pensamento de que a MPB vai sempre apoiar causas populares e agir pelos pobres já que, em essência, seus representantes principais cantaram, mas não viveram contradições sociais reais? 

Historicamente, a MPB carioca sempre se colocou como um grupo à parte, um grupo privilegiado dentro da música. E nas reuniões sobre o setor, nas quais eu mesmo estive, seus integrantes traziam ideias como se elas representassem o desejo de todos os músicos. Músicos, editores e empresários da MPB acabaram se tornando, no jogo político, um grande grupo de interesse. É preciso lembrar que, dentro dessa lógica de que a MPB teria sido um baluarte da democracia criando várias músicas sobre a liberdade, esses artistas da classe alta e média falavam de suas vivências, algo que raramente entrava na verdade do que o povo estava passando. A discussão ficava ali, entre Copacabana e Leblon. A MPB é importante e relevante em si, representativa no sentido de valor e qualidade estéticos, mas gerou uma mística de esquerda que é irreal.     

 

A busca pelos editais se tornou um trunfo do governo para ter os artistas a seu lado?

A questão é priorizar os editais enquanto ninguém olha para questões que impedem o exercício da profissão, problemas de arrecadação e distribuição do direito autoral, resoluções para que os pagamentos de streaming sejam justos, segurança para os músicos se apresentarem na rua sem correrem o risco de ser presos, implantação de uma educação musical de base do brasileiro. Uma agenda extensa que reúne 300 tópicos centrais. São 300 problemas sérios que precisam ser organizados pelo governo para se criar uma política pública só da música.

 

Os próprios músicos, que têm uma visão geralmente inclusiva, não se sensibilizam com essa situação?

Os movimentos sociais mais próximos do bloco no poder caíram nesse imediatismo de edital com um discurso de apoio partidário: ‘Vamos apoiar porque tem de apoiar’. É um grupo que não luta por algo maior do que isso, algo que poderia deixar um legado. Do outro lado, estão músicos que não são ligados ao bloco no poder e não estão organizados para fazer algum tipo de pressão.

 

O que esse desequilíbrio reflete nas práticas de política pública?

Eu estive envolvido com um estudo sobre os editais do setor musical no Paraná. Ao apresentarmos os resultados, levamos um susto ao descobrir que aquela não era uma realidade só do Paraná, mas do Brasil todo. Analisamos 22 mil projetos que receberam algum tipo de pagamento de fomento. Bolsas, viagens, lançamento de álbuns e shows. Desses, 90% foram de pessoas que ganharam algum dinheiro, um pequeno valor durante a pandemia, enquanto um grupo de 500 e poucas pessoas receberam verbas de vários editais e, repetitivamente, da Lei Aldir Blanc, que era um recurso emergencial e assistencial. Por isso mesmo, esse recurso deveria ser distribuído o máximo possível. Mas um grupo ainda mais seleto, de 103 pessoas, recebeu, cada uma, entre dez e 20 verbas diferentes de editais nesse período.

 

O que isso mostra?

Comprova que, de fato, a desigualdade gera mais desigualdade e o dinheiro gera mais dinheiro. O problema é que a política de editais, em vez de fazer a inclusão, acaba ampliando esse abismo social. Sou a favor dos editais, acho que deveria ter até mais recursos dessas leis, mas eles estão sendo mal aplicados. Veja só os números do mesmo estudo no Paraná: 96% da categoria dos trabalhadores da Cultura, algo como 400 mil pessoas, não recebeu nada. Deles, 44 mil concorreram nos editais da Secretaria da Cultura e não conseguiram nada e 200 mil nem tentaram. Quantos foram beneficiados? 14 mil. Desses, 12 mil ganharam bolsa, pouca coisa em dinheiro, e apenas dois mil ganharam, veja bem, duas, quatro e até oito prêmios da Aldir Blanc. A história fecha assim: 0,1% ficaram com uma bolada; 96% foram excluídos; e 3,6% receberam algum pequeno valor. E pior: os pagamentos de editais ficaram concentrados na capital, Curitiba, que recebeu 80% do dinheiro. São 399 municípios no Estado, e o dinheiro dessas leis era estadual.

 

As decisões culturais foram contaminadas por alinhamentos ideológicos. Isso é irreversível? 

O Brasil caiu na armadilha da polarização dos blocos. São dois (esquerda e direita) disputando pelo velho Brasil colonial de sempre e vivendo a herança do pensamento português, do sebastianismo, do salvador, do pai de todos e do mito. É o mesmo culto à personalidade praticado por regimes como o nazismo, o russo-soviético do período comunista e por ditaduras na Europa e na África.

Julio Maria

Margareth Menezes e Lula

Quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

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