Blog do
Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
Paul McCartney desafinado e os primeiros sinais de que um tempo está chegando ao fim
Aos 81 anos, beatle faz os shows mais frágeis de sua carreira em solo brasileiro e se entrega às vozes da multidão
Paul em ação: sem baixar o tom das músicas, ele só cria rotas de fuga em último caso | Foto: Julio Maria
Aos 81 anos, o beatle Paul McCartney (ex-beatle não existe, pelo amor de Jesus) chegou a um lugar em que poucos artistas realmente estiveram. É a ele que devemos algo como 70% do êxito dos Beatles, o grupo que responde por algo como 70% da supremacia da música pop ocidental na Terra. Um feito e tanto quando levamos em consideração todas as outras expressões que poderiam ocupar este lugar. Seu poder transcende a ascendência revolucionária dos popstars, supera a longevidade histórica dos chefes de Estado e pareia com a onipresença dos líderes religiosos. Mexer com Paul é chutar a santa.
E é aqui que as coisas começam a ficar um pouco mais sensíveis. Certa vez, em fevereiro de 2019, eu chutei a santa. Ousei perguntar a Paul, em uma entrevista para o Estadão, sobre a afinação de sua voz. Antes de perguntar, na verdade, afirmei (uma técnica de entrevista que passei a chamar de ‘tratamento de choque’, aplicável a artistas que dão entrevistas há mais de quatro décadas e se mostram cansados de responder às mesmas adulações): “Paul, sua voz às vezes parece cansada, e você aparenta dificuldade em chegar a algumas notas. Está ficando mais difícil fazer apresentações com três horas de duração?” Antes mesmo de ler a resposta, os fãs acenderam as tochas.
Mas Paul respondeu: “Em que momento (do show) você acha que minha voz fica cansada?”, disse, sem melindres. “Ah”, me encorajei, lembrando dos shows recentes que havia visto em suas passagens pelo Brasil: “Em momentos mais agudos de canções como The Long and Winding Road; Oh! Darling; ou no final de Hey Jude...” Ele fez um rápido silêncio, pareceu chegar mais próximo do telefone e emitiu o início de Oh! Darling com um grito agudo e bem alto, como é na canção. Rimos e eu encerrei aquela parte da entrevista dizendo: “Ótimo, acho que você leva jeito pra isso.” A conversa seguiu com bom humor e eu pedi a Paul que ele formasse a melhor banda de rock de todos os tempos, mas alguns fãs não perdoaram o que consideraram uma heresia. Os fãs e, para meu espanto, alguns jornalistas. “Como ousa dizer a Paul que ele está desafinando?”.
Aqui o foco poderia migrar para a impaciência que sinto com jornalistas-fãs, incapazes de perguntas que poderiam, em seus entendimentos, ofender aos seus entrevistados-ídolos. Mas morro de preguiça desse tipo. Já ouvi em corredor de jornal coisas como “eu não posso falar mal de fulano, preciso estar nas redes sociais dos caras”. O medo do cancelamento matou a crítica, e a fatura pela ausência da crítica já chegou. A geração que cresceu sem ela, tanto de artistas quanto de fãs, não admite sequer reflexões. Não pode haver discordância. Todos são gênios. E, se os não gênios e seus fãs espumam com o contraditório, imagine quando o foco é, de fato, um gênio.
Pois, acreditando na evolução da espécie e na sobrevivência de algum interesse crítico, vamos lá: Paul McCartney nunca desafinou tanto em solo brasileiro quanto fez na noite de quinta, 7 de dezembro de 2023, quando esteve no Allianz Parque. Uma, duas, dez, muitas vezes. Escorregou onde antes não escorregava, como em Let me Roll It, Get Back, I’ve Got a Feeling, Maybe I’m Amazed, Band on the Run e Hey Jude (Oh! Darling não estava no repertório). Os técnicos aprenderam (ou foram instruídos) a fazer uma regulagem de som para proteger o cantor, o que explica as oscilações na qualidade acústica do show (nenhum técnico de Paul erraria tanto). Quando é seguro, eles colocam a voz na frente, sobre todas as outras camadas. Mas quando tudo fica frágil, a voz é escondida por traz de guitarras ou do paredão formado pelos metais (trombone, trompete e sax).
Há um desgaste mais perceptível agora do que em suas vindas anteriores, o que pode ser justificado pela idade. Mas há outros fatores. Quando se canta em turnês mundiais emendadas umas às outras atuando em tonalidades tão altas, e se usa o tempo de descanso para fazer aparições surpresa em lugares como o Clube do Choro de Brasília, por exemplo, um ano pode significar uma década para a saúde vocal.
As notas musicais em Paul existem, sobretudo os graves e os médios, mas os agudos não são mais acessados com a mesma facilidade. É como se uma região inteira tivesse desaparecido de seu campo vocal - um sofrimento que o tempo infere a cantores e cantoras, mortais ou imortais, a partir dos 70 anos. Em geral, eles sabem onde as notas estão e não perdem a esperança de chegar a elas, como no passado, mas sentem a limitação e começam a escolher outros caminhos. Alguns baixam as tonalidades, outros criam rotas de fuga. Paul ainda tenta os tons originais e só parte para atalhos quando a primeira tentativa não dá certo.
Cada artista lida com o ‘choque de mortalidade’ de uma forma específica. Elton John, 76 anos, baixou as tonalidades e assumiu um novo timbre, mais encorpado e cheio de drives. Ganhou com o tempo. Rod Stewart, 78, decidiu fazer apenas metade de seus shows, entregando a outra metade às backing vocals e criando uma espécie de bailão de formatura, como fez recentemente em São Paulo. Stevie Wonder, 73, usa os melismas que executa com seu alcance extraterreno como se eles fossem uma espécie de auto tune natural, afinando a voz em tempo real quando erra o alvo. Robert Plant, 75, reinventou-se como cantor, adotando regiões mais graves, mas não menos dignas. E Axl Rose, 61, tornou-se o exemplo precoce do cantor que joga os trechos que não consegue atingir para os fãs cantarem.
Alguns artistas usam ainda o coro da plateia, aquele que sempre falará mais alto que ele mesmo. Paul fez isso em Get Back, colocando-se como uma espécie de segunda voz outsider da primeira. Independentemente do que cantasse, o uníssono produzido por 50 mil vozes impressionantemente afinadas falaria por si. É o som do amor, lindo de se ver, mas que não costuma ser maior do que o silêncio de um vazio vivido apenas por quem canta. Milésimos de segundos que lembrarão que o tempo, aquele que parecia se esquecer de algumas pessoas, despertou. O som incompleto de uma nota abrindo um deserto no qual se ouve que a diversão está acabando.
As questões sobre a desafinação de Paul não são o desmerecimento de sua atuação nem a submissão de seu show a um aspecto técnico. Não reduzem a relevância do que ele fez a uma condição estética nem podem ser passíveis de crítica. Observar Paul em seus primeiros sinais de finitude, sustentado por uma plateia indiferente a qualquer deslize, é uma reflexão sobre escolhas. A de Paul McCartney é esta: entregar-se à condição humana acreditando que, ao final, o amor que recebe das 50 mil pessoas que se dispõem a cantar por ele durante quase três horas é o mesmo amor que ele deixou em cada uma de suas canções.
Julio Maria
Sábado, 9 de dezembro de 2023