

Blog do
Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
Sábado, 5 de julho de 2025
O golpe mortal de Alaíde Costa
Ao denunciar a exploração de negros por produtores culturais, cantora expõe a podridão de uma prática cada vez mais comum
Alaíde só não foi apagada porque nunca se viu com os olhos dos outros / Foto: Arquivo pessoal

Alaíde Costa tocou na ponta de um iceberg ao postar em seu Instagram uma mensagem sobre o que chama de exploração racial disfarçada de homenagem. Aos 89 anos, é de Alaíde a voz majestosa da música brasileira, redimensionada nos últimos anos por álbuns irretocáveis. Seu último disco, Uma Estrela Para Dalva, com canções gravadas por Dalva de Oliveira, uma das rainhas do rádio, morta em 1972, prova que nada a tira do prumo. Ela não entrega sua longa história a promessas temporais, não trai suas referências por deslumbramentos geracionais e nunca se viu pelos olhos dos outros (“a negra que deveria cantar um sambinha”).
Talvez por isso tenha lhe doído tanto perceber que estava sendo explorada por projetos vestidos de reverenciais. Alaíde não cita nomes, mas o meio certamente saberá de quem ela está falando, o que nem é o mais importante. Ao falar de um, ela fala de muitos. Tudo ficou claro quando lhe ofereceram o cachê para participar de um musical que tinha como bandeira valorizar as vozes negras: R$ 1 mil. Um cantor de uma banda cover do Bon Jovi chega a ganhar R$ 4 mil em uma noite de casa cheia em São Paulo. “É sempre bom quando dizem que querem homenagear as vozes negras”, escreve Alaíde. “Reverenciar o canto ancestral, as histórias de luta, resistência e beleza que carregamos em nossa trajetória. Mas o que estamos vivendo agora não é homenagem, é apropriação.”
Ela passa então a falar como “nós”, porque escreve também em nome de Eliana Pitmman, cantora de grande expressão sobretudo nos anos 60 e 70. “Nós, duas mulheres negras, artistas com mais de 70 e 60 anos de carreira respectivamente, com décadas dedicadas à arte, à cultura popular, à música brasileira e felizmente com agenda cheia, nos deparamos com a proposta para participar de um musical que diz querer celebrar a negritude e as vozes negras oferecendo um cachê de mil reais para cada uma. Um musical que possui patrocínios, incentivos e recursos. Um projeto que, no discurso, prega homenagem, mas, na prática, prega mão de obra barata, como se o simples convite já fosse um favor, como se estivéssemos ali apenas para cumprir a cota simbólica da ‘representatividade’. Isso não é homenagem, é exploração.”
É uma cacetada como nenhuma artista de sua ou de qualquer outra geração teve coragem de dar em produtores que usam nomes, prestígios e culturas de artistas renomadas para terem seus projetos aprovados para captação de recursos vias leis de incentivo. Alaíde segue para o fim de seu texto: “Seguimos firmes, com dignidade, escolhendo onde e com quem cantar. Porque, antes de tudo, temos consciência de nosso valor – e não vamos aceitar menos do que merecemos”.
A fala de Alaíde aponta para a deformação de um projeto de política cultural não oficial, mas necessário em um país de desequilíbrios como o Brasil – sobretudo nos anos que sucederam a política cultural de um governo que se declarou racista. Ter projetos que valorizem e visibilizem vidas apagadas por questões raciais, como a da própria Alaíde (a quem os bossa novistas tratavam com desdém e os documentaristas seguem apagando de posições importantes, como sua presença no álbum Clube da Esquina) se tornou uma urgência.
Uma forte contra-onda cultural ao período pós-Bolsonaro era necessária. Os tempos haviam sido trevosos, com um ministro da Cultura fã de Joseph Goebbels, o homem da propaganda do nazismo que ajudou a convencer Hitler de que o extermínio dos judeus deveria ser total; um presidente da Fundação Palmares negacionista do racismo estrutural no Brasil; e o próprio presidente do País pregando ódio à classe artística. Nas internas todos sabiam que, a partir da reativação das políticas culturais pelo governo Lula, projetos que não fossem alinhados com as questões ligadas a justiçamentos sociais preteridos pelo regime anterior teriam menos chances de serem aprovados em editais. Organismos privados, como o Sesc, seguiram a mesma pauta.
Para seguirem aprovando projetos e ganhando suas porcentagens, os produtores deveriam virar o leme para questões ligadas a ancestralidades, apagamentos, tributos e homenagens à negritude, aos dilemas LGBT e, em menor escala, aos povos indígenas. Houve então um transbordamento de eventos, sobretudo festivais de música, usando um casting que se tornou repetitivo, com os mesmos artistas representativos em muitos festivais. Eles ganharam até apelido no meio: os “aprova-editais”.
Apesar do desequilíbrio provocado por essa prática, nem o excesso tiraria a importância de um movimento de alta ocupação de espaços culturais como forma de resposta a um apagamento histórico de 525 anos e à lavagem cerebral ministrada pelo governo anterior. Mas a coisa começou a dar errado, contraditoriamente, quando muitos desses projetos se tornaram financeiramente viáveis e mercadologicamente funcionais.
Ao descobrirem o caminho das aprovações de projetos, os produtores passaram a sugerir a grupos culturais homogêneos dominantes (héteros, brancos, homens) que incluíssem em suas formações pessoas representativas de alguma demanda social, mesmo que não a conhecessem ou não a achassem tecnicamente aptas. Muitos desses coletivos soaram naturalmente mentirosos, e não passaram da primeira temporada. Quando elaboravam projetos especiais, técnicos e produtores começaram também a impor aos artistas que chamassem nomes representativos em alta, mesmo que não tivessem afinidades entre si.
De mini-eventos periféricos aos maiores festivais de música pop do País, começou a surgir uma camada mais profunda por trás da pele do engajamento. Mais do que dar espaços para as mensagens contra as injustiças praticadas às pessoas negras, indígenas e LGBT, o importante era garantir com esses artistas um posicionamento visível do patrocinador, que descobriu a grande fatia de consumidores revelada pela contra-onda. Mais dinheiro passou a ser injetado nesses projetos, mas os cachês dos artistas seguiram os mesmos.
Alguma coisa não encaixava. Se esses projetos eram tão inclusivos quanto pregavam seus nomes e suas programações, quais deles diminuíram o preço de suas entradas para atender aos fãs desprivilegiados que jamais conseguiriam entrar em um Lollapalooza? E a pergunta que nenhum artista responde porque não quer deixar de ser chamado para a próxima edição de um festival: Quanto os “festivais conscientes” pagavam de cachê para um artista brasileiro? Uma máquina de soltar papeis picados alugada para o Coldplay custou mais caro do que um rapper.
Até chegarmos ao post de Alaíde, existe um último estágio desse circuito. A mesma ganância da “era branca”, quando as políticas culturais não haviam sido racializadas, se repete agora: muitos produtores descobriram que, mais do que manterem-se no jogo usando bandeiras pseudo-empáticas para aprovarem seus projetos, eles podem ganhar um bom dinheiro explorando a história desses artistas. Para esses produtores, visibilizar quem estava invisível já é o bastante. Dar palco a um negro, para eles, já é um presente.
A contra onda esqueceu-se da peça fundamental que existe entre o público e o palco: o produtor. Quantos deles são negros? Ou quantos se preocupa realmente com algum propósito que não seja apenas lucrativo? Sem a formação de produtores que tenham sentido na pele o poder transformador que um projeto cultural representa, que saiba negociar com empresários por ganhos coletivos e que se movimente para encontrar novas frentes artísticas, em vez de sentar-se sobre cinco ou seis ‘papas-projetos’ viciados, só trocaremos a invisibilidade total pela visibilidade escolhida, mais uma vez, por pensamentos escravagistas.
Julio Maria