Blog do
Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
O ano em que a Inteligência Artificial fez cair as primeiras lágrimas
Evolução da tecnologia que começa a criar canções só coloca em risco compositores que pensam como ela. O problema é que eles são muitos
Canção Now and Then, lançada em 2023, não teria nada de artificial, segundo Paul / Instagram: The Beatles
A expansão planetária da Inteligência Artificial na música, uma marca histórica de 2023, deveria incomodar não por ameaçar a soberania humana das criações mas por deixar-nos uma reflexão inconveniente e uma pergunta profana: o material entregue pelos computadores não é fruto de uma compilação aleatória feita por robôs sem coração, mas da reprodução, ou da delação, de um jeito viciado do ato do criar instalado na própria mente humana.
A operação dos robôs, juntando fragmentos que já deram certo, minerados em seus bancos de dados, segue exatamente o que se tornou o modelo criativo dos humanos a ponto de permitir que se faça uma questão limítrofe que ninguém quer responder: com a evolução das estratégias artificiais, pode até mesmo uma música dos Beatles criada por IA ser melhor do que uma música dos Beatles criada pelos próprios Beatles?
A resposta, não atire no mensageiro, é sim. Em 2016, quando pouca gente falava em IA, o laboratório de pesquisa CSL, da Sony, usou seu sistema de IA, chamado FlowMachines, para combinar algoritmos musicais gravados pelo quarteto inglês e parir o que foi anunciado à época, por mais que houvesse “um toque humano na finalização”, como a primeira música criada com o uso de IA.
O resultado foi Daddy’s Car, uma balada em clima psicodélico de início um tanto confuso mas que pega muito a partir da parte B e segue melhorando até o ápice, passando por comoventes aberturas de vozes. Ela não passa de uma colagem feita com alguns dos primeiros recursos de IA da história, mas que supera em muitos quesitos Now and Then, a canção criada há mais de quatro décadas pelo quarteto, engavetada para alívio de George Harrison, que a rejeitou à época, mas finalmente lançada em outubro como “a última música dos Beatles”.
Ela perde para Daddy’s Car não apenas nas escolhas harmônicas e nos arranjos, mas também por ser menos original do que a peça feita por robôs. E é aqui, no constrangimento autoral, o lugar onde a história pode fazer a curva.
A IA, vejamos o copo meio cheio, chega na hora certa. Se ela pode colocar em xeque o poder criativo do grupo que menos errou na história da música pop, o que fará, assim que estiver atuando em larga escala, com produtores de hits que baseiam suas composições em algoritmos artificiais de plataformas de streaming; artistas que sustentam carreiras no plágio disfarçado; gêneros, como o sertanejo e o funk, retroalimentados por atos antropofágicos; e todo e qualquer artista que se deitar sobre o conforto de seus próprios acertos anteriores no momento da criação?
“Máquina, me faça uma música nos moldes do Jota Quest.” “Robôs, criem o próximo sucesso de Nando Reis.” “Deuses artificiais, componham um álbum de Henrique & Juliano”. Se algo disso sair melhor do que um trabalho recente feito pelos autores de carne e osso, alguma coisa pode estar indo mal com seus processos criativos.
Há dois caminhos para a criação musical. Um consiste no garimpo do ‘veio de ouro’ que só aquela canção terá, na busca pela fagulha que assusta e faz levitar o próprio autor e na vigilância contra apropriações acidentais de si mesmo (o autoplágio) e de outros artistas (o que é normal quando esses artistas têm pesos históricos). O outro, muito mais usado, mas que ninguém conta, baseia-se naquilo que já deu certo, evita riscos, segue os mapeamentos levantados por plataformas de streaming como o Spotify, que indica o instante em que um ouvinte pula uma música sugerindo o motivo dessa rejeição (como introduções e solos longos), e faz escolhas de layouts de assimilação rápida para ter aderência universal, o que inclui recondicionamentos de sobras de estúdio um dia rejeitados por artistas que não estão mais aqui para lapidá-los.
Não é o pensamento humano criativo, aquele que rompe padrões, que será ameaçado de extinção pela IA , mas o pensamento humano padronizado, cansado, artificializado. Juntar pedaços de ritmos e melodias funcionais para performar nos charts é algo que os robôs já aprenderam a fazer. Mas assombrar, transpassar, surpreender e levar um ouvinte às lágrimas são, ainda, poderes que só os humanos têm.
Julio Maria
Quarta-feira, 27 de dezembro de 2023