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Julio Maria

Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico

Segunda-feira, 23 de junho de 2025

Maestros também choram

Só do palco sabemos porque Roberto Minczuk vai às lágrimas diante da Terceira Sinfonia de Mahler

Minczuk: energia e lágrimas/ Foto: Julio Maria

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Escrever o que se sente diante de uma sinfonia de Mahler é algo que deveria estar na lista das coisas proibidas de virar texto. Proibidas não por censura, mas por esgotamento. As palavras têm limite. Resumem-se àquilo que os dicionaristas se lembraram de colher na fala de povos que ainda não tiveram tempo de dar nome a tudo. 382 mil verbetes da Língua Portuguesa não bastam.

Vejamos: qual a designação dada a humanos que conversam com animais? Como se chama o primeiro dia da primavera? Até quando todas as espécies de vazio serão batizadas de “tristeza”? O que sentimos quando o hipotálamo passa a emitir sinais de alerta, a respiração é interrompida, o corpo é suspenso pelo som de 170 instrumentos e morremos, mais precisamente, nos últimos compassos da Terceira Sinfonia de Mahler?

A solução das palavras, no caso de Mahler, pode estar na observação da maior de suas sinfonias, mas de um lugar do qual o compositor jamais esperou ser observado: o palco. Não deve ser pecado transgredir o austríaco Mahler, alguém que, desde sua estreia nos recitais, em 1870, rasgou as regras para praticar transgressões de todo tipo. Dentre elas, vejam só, infiltrar músicos na plateia. Então, seria apenas inverter os fatores e infiltrar-me em Mahler.

Por quase uma hora e quarenta minutos, eu e minha companheira, Indiana Nomma, estivemos sentados ao lado de uma extensa fileira de clarinetes, flautas transversais e trompas e de um grupo de oito contrabaixistas (coisas de Mahler). Era o concerto da Terceira de Mahler no Teatro Municipal. À nossa frente, as violas. Atrás, os metais e o coro. E, diante de todos, o maestro Roberto Minczuk.

Tudo começou 24 horas antes, em um jantar na casa do empresário Rogério Botasso, na Rua da Consolação. Entre vinhos, carneiros e arroz de bacalhau, Minczuk, sentado ao lado de sua parceira de vida, Valéria, e da jovem cantora Ju Santos, irrompeu as falas com duas notas de um misterioso adágio em ré bemol: “E se...” Olhamos todos em pausa e ele voltou, andante: “De que outro lugar seria melhor assistir a um espetáculo além das primeiras fileiras?” Nova pausa. 

Minczuk já havia nos convidado para assistir ao concerto da noite seguinte, quando ele conduziria sua Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Agora, dobrava o convite: “Vocês querem assistir do meio da orquestra? Só precisam ir de preto e aguentar o que vão ouvir.” Cada um escutou uma nota nesse instante. A minha foi um mi bemol sem fim, executado pelo arco de um violoncelo.

Antes que nos refizéssemos, o maestro começou a falar com o volume em mezzo piano, já que a sala permanecia em silêncio. A Terceira de Mahler tem seis movimentos, e o primeiro anuncia, pelas trompas, a chegada do verão. São 36 minutos vividos em luzes, falsas luzes e algumas sombras, porque os verões de Mahler podem enganar. “Você não pode imaginar como isso vai soar”, escreveu o compositor à amiga violista Natalie Bauer-Lechner.

“O segundo movimento”, seguiu Minczuk, “chama-se ‘O que as flores me dizem’”. Um tempo de minueto solar, saberíamos depois, não tão convicto quanto a primavera de Vivaldi, mas esperançoso e conduzido também pelos violinos. É a valsa das flores. Tudo segue compassado até que, no segundo minuto, elas se agitam, embriagam-se e vivem o limite de suas irresponsabilidades.

As flores dão a Mahler as melhores notícias, mas mostram também a pureza de uma infância que ele não viveu. Enquanto o pai espancava a mãe, Mahler só queria que os dias na Boêmia passassem para tudo aquilo acabar. “Meu pai era violento. Minha mãe, a própria candura. Sem a aliança desses dois sentimentos, nem eu nem minha Terceira Sinfonia existiríamos”, escreveu ele quando tudo passou.

Depois das flores, os bichos. O terceiro movimento, “O que me dizem os animais da floresta”, é um scherzo de 18 minutos. Todos eles, os animais, parecem chegar aos sons de flautas, clarinetes, violinos, violas e violoncelos. Existe graça e delicadeza, mas também luta, fuga, ameaças, tempestades. Quiseram saber um dia de Mahler o que o levava a compor histórias sinfônicas que não pareciam mais música, mas livro. E ele disse: “Mas quem disse que eu componho música? Apenas ouço a natureza.”

Quando fala do quarto movimento, Minczuk ralenta e volta aos graves com os olhos úmidos: “E então, depois do verão, das flores e dos animais, Mahler compõe ‘O que os homens me dizem’. É um vazio, uma desolação. Os homens não dizem nada a ele.” “Sehr langsam”, anotou Mahler na partitura, pedindo aos músicos que a execução fosse muito lenta, tocada misteriosamente. 

Era até onde suas palavras poderiam ir. Como pedir com exatidão a execução de uma obra que fala do vazio que sentia no pai impetuoso, nos médicos sentenciando sua morte iminente, nos acadêmicos desdenhosos de suas sinfonias e no deserto de sentimentos de sua própria esposa, Alma Mahler?

“Sou três vezes apátrida!”, desabafou Mahler, já perto da morte, aos 50 anos, em Viena. “Como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Em toda parte, sou um intruso.”

Na noite seguinte, quando eu estaria no coração de Mahler, ao lado de Indiana e entre a orquestra de Minczuk, ouviria a voz da mezzosoprano Carolina Faria e todos os músicos rompendo a agonia do quarto movimento com tamanha intensidade que já não importaria mais decifrar Gustav Mahler. Só uma orquestra pode dar beleza às tragédias. Ali, entre todos aqueles músicos, há uma felicidade coletiva retumbante na tristeza porque todos sabem o tamanho da beleza que ela produzirá.

Minczuk toma mais um gole de vinho e diz que ainda não acabou. O quinto movimento chama-se “O que os anjos me dizem”. Depois da morte, Mahler nos leva a três anjos cantando no céu. Um coro de crianças faz o som dos sinos. Outro coral, só de mulheres, canta a melodia.

A mezzosoprano, agora, tem a voz do pecador arrependido. Diante de Deus, ele suplica por misericórdia e confessa ter infringido um ou outro dos Dez Mandamentos. Todos sabemos que o perdão virá, mas o perdão segundo Mahler não é tão incondicional. Enquanto Deus olha para o filho em lágrimas, as trompas anunciam as trevas e eu ouço Deus dizendo: “E o que virá depois do perdão?”

“E o que virá depois dos anjos?”, pergunta Minczuk. Ele olha para as pessoas à mesa, mas ninguém ousa responder. Qual seria o último movimento da mais extensa sinfonia do período romântico? Como termina, para Mahler, a existência humana? O maestro revela: “O que o amor me diz.” 

Ele e Valéria choram por Mahler e por lembrarem que foi esta a sinfonia de despedida de Naomi Munakata, maestrina do Coral Paulistano por duas décadas. Ao final de um concerto, em 2020, quando a pandemia começava a se alastrar pelo mundo, Naomi abraçou o maestro e sua mulher para dizer que aquele havia sido o concerto mais belo de sua vida. Poucos dias depois de ouvir os anjos de Mahler, Naomi morreu, vítima da Covid-19.

A noite seguinte

Orquestras vistas da plateia são corpos sólidos, uniformes e estáticos. Muitos formando um só. Seu mestre de cerimônias, o maestro, fica naturalmente de costas. Os músicos seguem concentrados em reproduzir as partituras. Quando elas não dizem tudo, os regentes, com os olhos, a força e a leveza de seus braços, dizem.

Orquestras vistas do palco são outras. Um oboísta troca de paleta cuidadosamente enquanto um clarinetista vira-se extasiado para apreciar o coral. Contrabaixistas sorriem. Uma violista dança com os ombros e o maestro, se for Roberto Minczuk, pode chorar.

Eu não sabia que maestros choravam no palco até vê-lo reger os compassos finais do último movimento, quando Mahler, depois de passar por tudo, nos leva até o amor. Os metais abrem caminho e os tambores ressoam em fortíssimo, fazendo o hipotálamo emitir sinais de alerta, a respiração ser interrompida, o corpo entrar em suspensão e todos morrermos por minutos, como eu, ou pela eternidade, como Naomi, nos braços da Terceira Sinfonia de Mahler.    

Julio Maria

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