

Blog do
Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
Editais, escassez e a busca por uma classe
Sem união, músicos brasileiros festejam editais enquanto perdem a chance histórica de terem uma política cultural de verdade
Grupo Procure Saber: Há dez anos, movimento de elite mostrou que existe algum caminho de classe | Foto: Divulgação
Cantoras, cantores e instrumentistas clamam há anos por uma política cultural que os contemple. Querem viver da música que produzem com a mesma dignidade que jardineiros ganham por cuidar de plantas, advogados recebem por defender causas e garçons sustentam-se servindo clientes. Nada mais justo. Sua esperança é pela valoração honrosa do trabalho e pelo entendimento, por parte de contratantes, público e Estado, de que aquela é, de fato, uma profissão. Há um certo extremismo no discurso de artistas que se sentem vítimas de uma conspiração sistêmica pensada para eliminá-los do planeta, de que existe um abafamento de suas existências para que Anitta e Ludmilla continuem a polarizar o Spotify – uma atualização da síndrome do gênio incompreendido dos anos 80, que justifica fracassos pessoais apontando para o sistema (até o rap já virou esse disco).
Mas os músicos, em geral, estão certos. Há muito embasamento para afirmar que eles nunca viveram tanto no vale das sombras. E é por isso que é preciso também dizer algo não muito reconfortante: antes de serem reconhecidos como classe, algo que lhes daria relevância e instigaria a ação do poder público na criação de uma política cultural real, os músicos precisam aprender a ser classe. Sem querer esvaziar a escassez que alimenta, inspira e vibra em 90 de cada 100 artistas brasileiros, é preciso parar de comemorar a aprovação de editais como se eles fossem política pública e brigar por projetos de leis sustentáveis e duradouras. Bora lá: aceitar editais de fomento como política pública é um erro histórico que esta geração tornará irreversível, só possibilitado por um ambiente de vibração vira-latista, esmolenta e individualista. Edital é concorrência pública, não política cultural. Ganha um, perdem mil. E quem perde continua na lama. Vibrar por um edital é passar o recibo de que, em música, não existe classe, mas indivíduo. Que venham os editais, mas que não venham sozinhos.
E então, o que seria essa classe musical? Classe não é panela, turma, cena, cenário, conchavo, compadrio, conluio, colab nem feat. Classe é um grupo diverso, forte e abrangente, com lideranças regionalizadas, nacionais e de trânsito em Brasília, algo muito próximo do que vimos a produtora Paula Lavigne fazer há dez anos, ao representar Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e toda a cúpula da MPB via Movimento Procure Saber. Por mais que tenha se tornado o microcosmo prime de uma possibilidade nacional, um ensaio exclusivista do que poderia ser uma frente popular democrática, um protetorado vip com a energia de quem fez a foto para identificar quem eram os verdadeiros tropicalistas de 1968, aquilo é espírito de classe. As pautas pelas quais eles se articularam para brigar em Brasília, como a mais famosa delas, a da proibição das biografias livres (perdida por pressão popular e resistência na imprensa), diziam respeito a seus próprios interesses e nada reverteram para quem vive de música no Brasil. Mas a experiência existiu pela primeira vez e a lição foi dada. Com líderes fortes e mobilização estratégica, é possível fazer um gigante crescer.
Uma segunda pergunta: podem os músicos, assim como os taxistas, os caminhoneiros e os metroviários, conviverem harmoniosamente em uma poderosa classe? Uma classe com uma pauta clara e defendida em coro afinado e consonante? Não, se eles fizerem política como fazem música e shows, naturalmente, com o ego na frente. Mas sim, se fizerem algum esforço contra suas próprias naturezas. Artistas singulares, aqueles que estariam no grupo político de uma categoria, não estão acostumados a andar em coletivo, mas à frente. Vivem da cena individual e soberana de um palco validada pelo aplauso da plateia e defendem quase que exclusivamente a obra que acabaram de lançar - o álbum, o single ou o show. São extremamente competitivos e, por razões históricas e legítimas, assumem cada detalhe de suas carreiras porque vivem a eterna sensação de que estão sendo roubados.
Mesmo os músicos que festejaram uma cantora no alto cargo do MinC já devem sentir que estão perdendo uma chance histórica. Margareth Menezes, a primeira mulher negra ministra de Estado, vai fazer um ano de pasta, em janeiro de 2024. Um ano de reconstrução da estrutura ministerial dizimada no governo anterior e de retomada do diálogo com gestores pelo país, mas de zero aceno ou alguma esperança de renovo estrutural à classe musical. Nenhuma proposta que tenha ido além dos fomentos via leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, herança torta dos anos de pandemia. Culpa de Margareth? Também, mas culpa sobretudo da falta de mediadores do próprio setor musical. Qual a pauta? Por onde podemos começar? Os músicos que se revoltam contra ‘o sistema’ teriam algo a propor?
Se não quiserem olhar para Paula Lavigne, olhem para o cinema, o meio que aprendeu a agir em classe: eles já cobram de Margareth a efetivação da Cota de Tela (a exibição obrigatória de um mínimo de obras nacionais nas salas de cinema ou nas TVs do Brasil), uma observação sobre os próximos passos da regulamentação do streaming, já aprovada no Senado (que também fala em cota mínima para a exibição de conteúdos nacionais nas plataformas), e a regulamentação do pagamento do Condecine por parte dos gigantes do streaming (o tributo revertido para o desenvolvimento da indústria cinematográfica no país).
Na falta de ideias, façam um copia e cola: imaginem plataformas de streaming musical poderosas como Spotify e Deezer sendo obrigadas a pagar um tributo para o desenvolvimento do mercado musical no País que dilapidam ou as emissoras de rádio tendo de exibir uma porcentagem mínima não apenas de música brasileira, mas da música brasileira mais fresca, criada ou gravada a partir de 2010. O efeito seria avassaladoramente maior do que os R$ 6 bilhões anuais para todo o setor cultural, garantidos pelas leis de repasse direto Paulo Gustavo e Aldir Blanc. E sem prazo para acabar. É bom lembrar que a Aldir Blanc, por exemplo, foi criada como política emergencial e com um prazo de vigência de cinco anos, dos quais dois já se foram. Quando esse tempo acabar e uma nova gestão vier, sabe-se lá com quais intenções, o quanto os músicos terão aproveitado a chance de terem um dia uma mulher cantora à frente do Ministério da Cultura? E o quanto a primeira cantora ministra da história do país terá feito pela categoria que a lhe deu a vida?
Julio Maria

Quarta-feira, 13 de dezembro de 2023