Blog do
Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
Como ser um católico
Diante de padres mecanizados, música ruim, catolicofobias e uma igreja de histórico nada edificante, sentar-se no banco de uma missa se tornou o maior ato de fé
Desafio da caridade: Cidade tem 80 mil sem abrigos / Foto: Julio Maria
Há pouco tempo, cansado de doutrinas que falavam mais do mal do que do bem, resolvi perdoar a Igreja que me ensinaram a desprezar e voltar a ser um católico. Católico mesmo, praticante, de ir às missas de domingo com um bom sapato, rezar pelas manhãs e ficar ansioso pela homilia do padre. “Católico praticante” é uma expressão curiosa. Jamais ouviremos “umbandista praticante”, “espírita praticante”, “evangélico praticante”, “budista praticante” ou “judeu praticante” por uma simples razão: em qualquer experiência transcendentalista, ou você pratica ou não conseguirá dizer que faz parte dela. Saber que católicos admitem-se “não praticantes”, ou que “não praticantes” se consideram uma modalidade de católico, não muda nenhum plano de fé, mas me deixa ressabiado com o Vaticano.
O último anuário publicado por Roma informa que o Brasil é o país com mais católicos do mundo, com 180 milhões de pessoas batizadas em uma missa dominical. A contagem é feita pelo registro de batismos enviado ao Vaticano pelas arquidioceses do mundo, mas até os coroinhas sabem: cerca de dois terços dos bebês banhados em águas santas têm grandes chances de crescer e debandar dos planos espirituais feitos pelos adultos. Quantos católicos oficiais são católicos de fato? Ninguém sabe. E o que isso importa para o futuro da humanidade, além de alimentar o ego olímpico de uma ala da Igreja Católica que disputa território com os evangélicos? Absolutamente nada.
O caminho para sentar-me de novo em um banco de igreja foi árduo, mas resolvi entendê-lo como uma provação. Eu havia primeiro de passar sobre uma linha do tempo nada edificante, que começa nas fogueiras da Inquisição da Idade Média, atravessa a colonização dos povos indígenas das Américas do século 16, segue pelos molestadores de sacristia dos anos 90, faz parada na obscura opinião de Pio XII sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial e termina no apoio de parte dos cristãos a um genocida no Brasil. É uma experiência e tanto praticar o perdão dentro da própria Igreja Católica, e isso não deve ser por acaso. Depois de ler uma ficha corrida como essa, ouço Deus falando a seus enviados algo assim: “Gente de batina que fala em meu nome: antes de queimarem no inferno, vocês servirão de teste. Transpô-los será a maior prova de amor que um fiel poderá oferecer a mim.”
O segundo passo consistia em negociar com alguns dogmas excludentes que, para mim, nunca fizeram muito sentido sobretudo por colidirem com a própria Bíblia. Ou pela interpretação que faço dela. Interpretações diferentes criam religiões e provocam guerras há milhares de anos. As minhas não têm tanto poder. São apenas uma leve dissidência do catolicismo clássico para uso próprio e para que eu possa viver a experiência cristã do templo e dos ritos sem sentir que estou me entregando a alguma alucinação de rebanho. Ser ovelha não é o problema. Meu pavor é ser gado.
Decidi assim minha reforma cristã particular: 1) Seguir recebendo a hóstia sem me confessar de supostos pecados diante do padre (“Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”, Mateus 8:8). 2) Seguir acreditando que toda a forma de amor, incluindo a trans, está nos planos de Deus (“Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus”, Gálatas 3:28). 3) Entender que outros caminhos de elevação espiritual não são obras do mal (“Não julguem para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem vocês serão julgados e a medida que usarem também será usada para medir vocês”, Mateus 7:1-2). 4) Abolir o bacalhau e qualquer sacrifício em dias santos. Aliás, Deus nunca deu a mínima para sacrifício algum (“Amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar ao próximo como a si mesmo é mais importante do que todos os sacrifícios e ofertas", Marcos 12:33).
A virtude da caridade tem passado por uma delicada revisão interna depois que vim morar no Copan, no Centro de São Paulo. Poucos lugares têm o poder de colocar um aspirante a ser humano no córner por tantas vezes em um mesmo dia. Semana passada, ao sair do prédio, vi que um homem tinha fome. Entrei na padaria e, mesmo sabendo que ele trocaria tudo por crack, comprei seu jantar. Andei alguns metros e um segundo apareceu. Como não dei o que me pediu e não olhei em seus olhos, talvez por me sentir em dia com minha cota de bondade, ele me chamou de arrogante e rogou duas ou três pragas do Egito. Mesmo que tivesse ajudado o primeiro, não bastou. Voltei para casa fracassado e corroído pelas frases do homem. Segundo a fala de Deus em um dos versículos do Livro de Provérbios, eu teria também sérios problemas a partir daquele instante: “Quem dá aos pobres não passará necessidade, mas quem fecha os olhos para não vê-los sofrerá muitas maldições”. Não dar o que o homem pediu não foi o problema, mas invisibilizá-lo foi. Entendi que o “dar” não é só abastecê-lo de coisas, mas olhar para vê-lo e ouvi-lo. É dar-lhe a existência.
É difícil mexer em algo que Deus cravou com tanta firmeza. Em outro trecho do mesmo Provérbios, lá está: “Quem trata bem os pobres empresta ao Senhor, e Ele o recompensará.” Sei que não foi intenção de Deus, mas tenho certeza de que seus filhos, ao lerem isso, entendem a caridade como uma espécie de investimento em um fundo de renda fixa. “Deixa eu ajudar um pobre ali para ver se a minha vida muda”. Não sei se foi uma boa ideia do redator final da Bíblia deixar na fala a promessa de recompensa por um gesto que deveria ser incondicional. Ou é assim ou não é amor, é negócio. Um padre resolveu a questão ao dizer o seguinte: “As pessoas deveriam procurar a Deus não por aquilo que elas podem ter Dele, mas por aquilo que Ele é.” No dia em que levarmos isso realmente a sério, teremos missas de domingo assistidas por cinco ou seis fiéis.
Segui tentando ajudar pessoas sem esperar nada por isso, mas foi preciso adotar algum critério que permitisse voltar para casa sem entrar em crise por dizer não para tanta gente. São mais de 80 mil pessoas em situação de miséria nas ruas de São Paulo. Por dia, conto entre sete e dez abordagens em uma caminhada em qualquer direção a partir do Copan por um raio de três quilômetros. Tentei adaptar-me a um pensamento budista. Para eles, os budistas, não devemos ver os que nos pedem com pena. Eles são mestres que estão ali para desenvolver em nós a virtude da compaixão. Achei sublime, mas ainda não sei muito o que fazer com isso. Se esses mestres vieram para nos ensinar a compaixão, como lidar com a pena e a culpa que sentimos diante de seus sofrimentos? Resolvi entregar a decisão para o coração. Ele vai dizer quem realmente precisa.
Antes de batizar-me em minha nova cristandade, eu precisava de uma boa missa que também atendesse a pelo menos dois critérios. 1.) O padre. Encontrar bons padres é como encontrar bons psicólogos, bons mecânicos ou bons cantores. Nunca é fácil. Assisti a três missas na Paróquia Santa Cecília com padres diferentes e nenhum foi além do que as leituras e o texto do Evangelho já haviam dito. Um desperdício. Para mim, padres rasos e insensíveis criam barreiras às pessoas que deveriam se sentir acolhidas pelo rito católico. Ao repetirem clichês espirituais, soam como transmissores mecanizados. Algo parecido se deu na Igreja de Nossa Senhora da Consolação. Um sacerdote muito bem articulado tinha uma fala baixa de tom acadêmico. Era um mediador de palavras, não um conector de almas. Saí tão vazio quanto entrei.
2.) A música. Eis a grande questão das paróquias cristãs. Vi grupos de senhoras cantando hinos desafinados, organistas investindo em solos que ficariam bem em bandas cover do Yes e grupos cheios de vaidade descendo a mãos nos violões. Investir na música de arrebatamento fez os evangélicos batistas negros ergueram um império cultural nos Estados Unidos a partir do gospel e os evangélicos neopentecostais brasileiros transbordaram suas fronteiras a partir da década de 1990. Nunca entendi por que os católicos se contentaram com o amadorismo e a sonolência. Vejamos o que diz a Bíblia: “Prestem culto ao Senhor com alegria; entrem na sua presença com cânticos alegres.” Deus nem falou de vozes afinadas. Só pediu alegria.
Tudo aconteceu muito rápido. Acordei em algum domingo ensolarado do tempo comum, me arrumei e encontrei minha parça de fé e de vida Indiana Nomma no Café Floresta. Seguimos pela Avenida Ipiranga, viramos à direita na Rua Barão de Itapetininga e passamos pelo Viaduto do Chá. Atravessamos o Centro Velho pela Rua XV de Novembro e entramos na Igreja de São José de Anchieta, no Pateo do Collegio. Uma edificação que mantém o espírito da cabana construída por jesuítas no mesmo lugar, em 1554. Entramos, nos sentamos e, enquanto olhávamos para os detalhes do altar e das paredes, a coisa se deu. Por nossas costas, vindo da parte superior da igreja, um coral de vinte pessoas abrindo vozes de forma espetacular nos abraçou e nos tirou do chão com um canto em latim. Enquanto cantavam, um padre que lembrava um mago de filme, careca no topo, de barba branca muito comprida e óculos redondos, entrou com um sorriso muito verdadeiro ladeado por seus acólitos para iniciar a celebração.
Sua fala precisou de dez minutos para derrubar a Igreja que eu tentava construir e reconstruir em mim a Igreja na qual ele acredita. Estava tudo ali. Não consegui mais parar de ouvir Padre Contieri. Ou de ouvir Jesus falando por Padre Contieri. Sólido mas inquieto, ritualístico porém crítico, denso e leve, Contieri oferece um espetáculo de palavra e de silêncio. Diz o que nunca pensamos, inclui pelo amor, não por ameaças, e é capaz de contestar a própria Igreja quando lhe parece importante. “Vivemos uma crise de fé e uma crise de transmissores da fé”. Decidi escrever isso depois que o vi provocar uma igreja inteira lotada por católicos praticantes, católicos não praticantes e familiares de um bebê prestes a ser batizado: “Nós católicos, fiéis e Igreja, somos apáticos, sonolentos e, permitam-me a palavra, covardes. Se quisermos mudar, não podemos ter medo de dizer o que somos.”
Julio Maria
Terça-feira, 6 de agosto de 2024